Cerimónia e repouso da nossa Placenta

Acredito que a Placenta é um Ser vivo dotado de inteligência própria. Ela alimentou, nutriu, manteve vivo até ao limite da sua existência, o ser humano pelo qual se doou. Quando o bebé nasce, a Placenta enfrenta os seus últimos momentos de vida. Depois de separada do Corpo da mãe, a placenta morre quase sempre esquecida algures na sala de partos. Por saber desde sempre que aquele não foi nem podia ser o dia da nossa despedida, pedi à minha doula que trouxesse a placenta do nosso filho para casa. Ela assim o fez e ao fim de três anos despedimo-nos assim.

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4/5/20246 min ler

Cerimónia e repouso da nossa Placenta

A Placenta, um órgão criado de raiz para nutrir e fazer crescer o bebé, é frequentemente esquecida e deixada para trás no cenário do parto. Após o nascimento, as atenções estão focadas no bebé e na mãe; no cuidado das necessidades físicas e, idealmente na protecção da hora dourada.

Acredito que a Placenta é um Ser vivo dotado de inteligência própria. Ela alimentou, nutriu, manteve vivo até ao limite da sua existência, o ser humano pelo qual se doou.

Quando o bebé nasce, a Placenta enfrenta os seus últimos momentos de vida. Depois de separada do Corpo da mãe, a placenta morre quase sempre esquecida algures na sala de partos.

Por saber desde sempre que aquele não foi nem podia ser o dia da nossa despedida, pedi à minha doula que trouxesse a placenta do nosso filho para casa. Ela assim o fez e ao fim de três anos despedimo-nos assim...

O tempo certo

É possível que leve a vida inteira a processar o meu parto. Sinto que ele está vivo e teve (tem) um poder tão transformador, que poderei beber ensinamentos dessas horas para sempre. Despedir-me da Placenta do meu filho era mesmo muito importante para mim. Tinha de ser especial, sentido e vivido. Não queria que este dia chegasse e fui adiando porque entregar a Placenta, símbolo físico da nossa união uterina, era como fechar uma porta. E eu tinha medo desse momento.

Porém sentia há muito tempo que mesmo não querendo, este era um rito de passagem para o qual tinha chegado a hora. Será que algum dia estaria preparada o suficiente?

Não sei. Lavada em lágrimas fui ter com o meu marido e disse-lhe: "terça feira vamos despedir-nos da Placenta do Afonso. Eu não quero, mas sei que chegou a nossa hora"

Assim foi.

Preparação

Comecei a descongelar a nossa Placenta na segunda feira de manhã. Á noite já estava quase pronta. Abri o nó do saco com muito cuidado e intenção. Quando consegui, ouvia as gargalhadas do meu filho no quarto a brincar com o pai. Eu suspirava de nervosismo. Não a via há 3 anos. Como seria o cheiro? A textura? Ainda teria a energia do parto?

Avancei a medo. Espreitei e estava cheia de sangue. O nosso sangue do parto. Senti um cheiro suave, nada ferroso. Era o cheiro do nascimento do meu filho que estava ali. Comecei a pegar suavemente, a tocar, e trouxe-a para um prato grande onde pude ficar a vê-la, a aprecia-la sem pressa. Vi o cordão com as artérias e a veia. Observei e estiquei o saco amniótico que guardou o meu filho em segurança durante 41 semanas e 2 dias. Reverenciei este Ser, olhei a sua cor bonita. Chorei de emoção por tudo o que o nosso Corpo é capaz de fazer. É tão poderoso.

Pensei na importância deste momento para mim. Sentada frente a frente com a mulher que me tornei depois de ser mãe.

Um dia de chuva e flores.

Um dia muito molhado pela chuva torrencial, mas no meu rosto já não havia lágrimas.

Já sem medo da iminente despedida; apenas com uma imensa alegria e agradecimento pelo bom parto que tivemos, pela excelente saúde do nosso filho, pela superação deste pós-parto, por tudo aquilo em que nos estamos a tornar depois de atravessar a porta da vida com um filho nos braços. O meu sangue menstrual também desceu nesta manhã e a energia de entrega estava no auge. Confirmei-me em processo de desapego e deixei-me conduzir pelo apelo da Vida a par do sábio ritmo do meu Corpo de mulher.

Pedi ao meu marido que nos conduzisse até um lugar no centro da Floresta, onde tivéssemos privacidade, solo muito fofo e húmido, arvores guardiãs e testemunhas deste nosso momento.

Fomos com o nosso filho e a nossa grande amiga Ana, que cheia de Amor e extrema sensibilidade, fotografou este momento tão único e irrepetível quanto o próprio parto.

O nosso ritual

O Afonso estava super curioso e atento ao que estava a acontecer. Quis participar em tudo e sabia que estávamos a despedir-nos da sua Placenta. A alegria dele contagiava-nos. Foi tão bom fazer isto com ele. Abrimos um espaço generoso na Terra. A chuva abençoava cada momento. Colocámos as verduras, peguei na nossa Placenta e deitei-a neste lugar encantado. Oferecemos-lhe cada elemento com todo o amor e alegria. Oferecemos-lhe beleza, agradecimentos sem fim, sorrisos e respostas às perguntas que iam surgindo do nosso filho.

O meu marido pegou no seu Tambor-medicina e bateu até ao fim da nossa cerimónia. O Som que pairava dentro de nós e à nossa volta era vibrante como o coração de uma mãe e de um filho que batem juntos e ecoam para sempre.

Alegria vinha daquele tambor. Esperança de uma nova vida nascia com as aguas que jorravam do céu.

Estávamos a despedir-nos! Estávamos em festa!

Os elementos que escolhemos

  • Uma carta de agradecimento e reconhecimento

  • 3 paus de canela e arroz para desejar prosperidade e abundância ao nosso filho

  • o seu coto umbilical

  • 2 cristais: malaquite e drusa de cristal para votos amplificados de saúde e regeranção

  • Flores secas de limpeza e alento para o Corpo

  • Flores frescas para acolher, embelezar e ser Lar da morada de repouso da nossa Placenta

O nosso filho sabe

Cerimónia da Placenta
Cerimónia da Placenta

O nosso filho sabe muito. Nem nós sondamos até onde vai a imaginação dele. Juntamos à sua sabedoria inata os tesouros e valores que só a tradição familiar pode passar.

Ensinei-lhe a rezar ao anjinho da guarda. O pai ensina-lhe a fazer todo o tipo de engenhocas que lhe permitem levar a cabo os seus desejos de pequenino. Juntos ensinamos-lhe que o chão que ele pisa, a água que ele bebe, os animaizinhos com que se cruza, as arvores que nos vigiam, são todos Seres Vivos que compõem a Grande Família da qual fazemos parte.

Não há "eles". Há "nós". O nosso papel é proteger, cuidar, amplificar, enaltecer a ecoesfera que nos acolhe e os rituais têm o seu papel nessa missão vivencial, pois ao devolverem-nos chão, pertença, costume, tradição, família, mostram-nos que fazemos parte de algo maior e temos sempre um lugar para onde voltar, como ao colo de uma mãe que ama, educa, cria e dá asas para voar ao seu filho.

A despedida e o Rito de Passagem

Demos por acomodada esta fase das nossas vidas. Devolvida ao chão, ao barro, ao pó de onde todos viemos, a Placenta do nosso filho agora reverbera num lugar não muito distante daqui. Ela fundir-se-á com todos os elementos, dará de comer a outros Seres vivos, será muito em breve, solo fértil de onde nascerão mais flores, cogumelos, ervas, quem sabe uma arvore daqui por muito, muito tempo.

Continuou a sua missão de nutrir porque quem nasce para se doar, tem sempre Trabalho a fazer neste planeta. E assim seguimos nós o nosso caminho. Pessoalmente ganhei mais espaço interior para receber o futuro com alegria, com um senso de adultez renovado e reverência por ter nascido mulher.

Do meu ventre nasceu um filho. Do meu ventre nascem também projectos e sonhos. Neste mesmo lugar, embalo e dou carinho a outras mulheres que estão a atravessar as águas da maternidade.

Esta experiência fez-me mais inteira. O tempo foi bom para mim, pois trouxe consigo a recompensa do saber esperar.

Até sempre minha Placenta

Rito de passagem
Rito de passagem

"O teu corpo é sagrado. Tu és o que de mais belo e inteiro restou da vida em que mãe e filho foram só um. A barriga grávida já se foi. O leite já não goteja. O cabelo ganhou de novo força. O sangue flui a cada mês lembrando-me da primavera a que fui prometida.

Amar-te-ei por tudo mais que ambas sabemos que nos une, porque no fundo, somos uma só. Somos eu, tu, o homem que te semeou dentro de mim, e o menino que os três moldámos como barro para fazer nascer esta linda obra prima chamada Afonso.

Até sempre meu amor. Até sempre minha placenta."